Eu e o patriotismo nunca andámos de mãos dadas. Nunca consegui perceber o que isso é. Irei seguramene morrer sem que tal aconteça. Do nacionalismo nem falo, é-me desde sempre repugnante.
Tenho muito gosto em ser portuguesa. Nasci em Portugal, aqui vivi e fui educada até aos 18 anos, a minha cultura de nascimento é portuguesa. Recusei pedir a nacionalidade francesa quando vivi em França durante muitos anos e aí constituí família, apesar de me sentir perfeitamente integrada. Defendi muitas vezes Portugal contra o preconceito e a xenofobia, as ideias feitas e as idiotias e a pura ignorância de muitos franceses.
Nunca disse: tenho muito orgulho em ser portuguesa porque ser portuguesa, ou de outra nacionalidade qualquer é um mero acaso, não há de que ter orgulho.
Mas hoje, tenho muito orgulho no nosso país. Estamos no meio de uma crise que é das mais terrríveis. Uma doença ameaçando incontáveis vidas humanas em todo o planeta tem feito vir ao de cima nas nossas consciências o pior e o melhor da humanidade.
O pior: a falta de caridade ou, como gosto de chamar-lhe, compaixão, as profecias de fim do mundo, os rumores, a desinformação, o aproveitamento político dos que só pensam em poder, o aproveitamento dos especuladores. E o medo, não o que tolhe as reacções, mas o que leva pessoas, de outro modo perfeitamente inócuas, à propagação da desmoralização e da maldade.
O melhor: a solidariedade, a compaixão, o sacrifício, a dedicação, o trabalho, o bom humor, a coragem de ir contra o medo e a adversidade, a coragem de ir contra a maré.
Pois bem: tenho hoje o exemplo de uma pequena sociedade (somos uma gota de 10 milhões em 7 biliões de habitantes da Terra) que percebeu da base ao topo as prioridades da Vida. Aceitamos as regras que nos são impostas e achamos justas e criticamos as que achamos injustas, aceitamos as suas consequências e protestamos quando elas conduzem ao arbitrário, e os nossos melhores produzem o que é preciso e absolutamente essencial a uma sobrevivência digna: comida e outros bens materiais, saúde, cultura e paz.
Dêem uma vista de olhos pelo que se passa no mundo e verão: a fome continua em largas partes do planeta, o acesso básico à saúde ainda não é generalizado e menos ainda aos cuidados necessários ao combate a esta pandemia — e não é só nos países pobres, há países ricos em que a distribuição destas riquezas que nos pertencem a todos ainda é muito mais desigual do que entre nós –, as guerras que não acabam e outras que recomeçam, a desfaçatez de forças policiais que agridem não longe daqui pessoas cujo único pecado é o de estarem na rua, praticando a conhecida máxima dos desordeiros oficiais: dispara primeiro e pergunta depois, os grandes obedientes que só pensam em si próprios (ah face a isto, a passiva desobediência portuguesa é quase bendita), e por aí fora.
E nós? Pois bem, acatamos (nem sempre) resmungando desobedientemente, as ordens das autoridades que nos governam com conta, peso e medida, enfim, somos um povo com mais civismo do que se poderia esperar. Somos inventivos, desastrados, amigos, bisbilhoteiros, chicos-espertos e inteligentes, deixa-andar, industriosos, criativos e filosóficos, gente de boa cepa em geral e preconceituosos (sim, racistas, machistas, ignorantes, bestas quadradas de vez em quando). Não há como saber-se o que se é para melhorar a receita.
Mas o que despoletou o título deste texto é o seguinte:
- Um governo que percebeu o que esta pandemia significa em si e para além do presente imediato, um primeiro-ministro que vai à luta sem pejo e responde taco-a-taco, num Conselho Europeu, a um pacóvio que só vê o que tem em casa (sem perceber que não há casas imunes se em redor existir caruncho), e que percebeu que as mudanças que aí vêm é agora que têm de começar a ser construídas. O mesmo primeiro-ministro que pôs na ordem um escrevinhador de pasquim que lhe perguntou se não tinha exagerado ao chamar repugnantes as declarações do ministro holandês no Conselho Europeu. E de seguida, o governo que preside dá na prática uma lição dessa mesma solidariedade que pede, ao publicar um despacho que regulariza todos os imigrantes e requerentes de asilo que tenham processos pendentes no SEF, dando-lhes acesso a todos os serviços públicos, Serviço Nacional de Saúde e apoios sociais. Sim, tenho orgulho no nosso país.
- Em resposta aos choradinhos dos que só sabem deitar abaixo, muitas vezes sem compreenderam o que se passa realmente ou, quando o sabem, fazendo aproveitamento político das falhas e faltas que sofremos, temos cientistas, engenheiros e, esperamos, empresários com consciência social, a trabalhar para produzirmos o que nos faz falta em vez de cruzarem os braços e fazerem jeremiadas pelos muros mediáticos. Assim, já surgiram soluções para começarmos a produzir kits de testes, em vez de contarmos só com o que podemos comprar, e caro, nos mercados internacionais. Uma equipa do Instituto de Medicina Molecular, dirigido pela investigadora em Biociências e doenças infecciosas, Maria Manuel Mota, resolveu o problema dos reagentes que nos faziam falta e encontrou uma alternativa existente em Portugal. Uma boa notícia para as pessoas e para a economia. Também já estão em avaliação ventiladores cujos protótipos foram construídos por uma equipa dos Politécnicos de Viseu e Leiria, com colaboração de empresas e médicos. Esperemos que a avaliação pelo Infarmed seja expedita. Sim, tenho orgulho no nosso país.
- Há uma inúmera quantidade de simples cidadãos que organizaram respostas sociais a que dão o seu tempo e dedicação, ajudando pessoas em maus lençóis, quebrando a monotonia da internet com páginas e emissões educativas e lúdicas dedicadas às crianças e adultos, apoiando vítimas de injustiça ou arbitrariedades. Há autarquias que organizam as suas áreas para responderem ao desafio que o espalhar da infecção lança a todos nós e até as que sabem desobedecer se for preciso. Há cidadãos a fazerem o que podem ajudando os vizinhos com ofertas e palavras boas. Há artistas a oferecerem música e outras artes pela internet porque nem só de pão… Sim, tenho orgulho no nosso país.